O chamado hard problem, formulado por David Chalmers em 1995, pergunta:
Por que certos processos físicos dão origem à experiência subjetiva?
Por que existe “algo que é ser” um organismo?
Segundo Chalmers, mesmo que expliquemos todas as correlações neurais, cognitivas e comportamentais, ainda restaria uma lacuna: por que há sensação, e não apenas processamento?
Essa formulação tornou-se influente porque parte de duas premissas implícitas:
- Que processos físicos são, em princípio, neutros quanto à experiência.
- Que a subjetividade é um fenômeno adicional, algo que precisa ser “gerado” pela física.
A visão exposta no ensaio anterior — de que subjetividade emerge de um ciclo recursivo de transições corporais irreversíveis com erro intrínseco — altera radicalmente o panorama e torna o hard problem desnecessário na compreensão da consciência.
O hard problem só existe quando se separa mente e corpo
O problema de Chalmers surge porque ele assume que:
- o processamento cognitivo é algo “que poderia ocorrer sem experiência”;
- a experiência é algo extra, que precisa ser “adicionado” ao processamento;
- e, portanto, precisamos explicar como a experiência “emerge” da matéria.
Mas essa separação depende de um pressuposto implícito:
A mente é uma espécie de software executado sobre um hardware neutro.
Esse é o ponto fraco da formulação original.
Quando reconhecemos que pensamento não é uma entidade abstrata,
mas sim um efeito físico e histórico do corpo, a lacuna ontológica desaparece.
A experiência não precisa ser explicada como emergindo de algo sem experiência, porque a própria dinâmica física do corpo já é experiencial.
Não existe um salto entre “neurofisiologia” e “qualia”; existe continuidade.
Se consciência é um processo corporal, não há mistério a resolver
O hard problem só é “difícil” quando se acredita que:
- processos físicos são totalmente objetivos, reversíveis e sem perspectiva, e
- consciência é subjetiva, irreversível e e tem perspectiva “de dentro”.
Mas na visão corporal emergentista:
- o corpo não é neutro; ele é sentido,
- o corpo não é reversível; ele é historicamente determinado,
- o corpo não é perfeito; ele é afetado por erro,
- o corpo não é replicável; ele é único e vulnerável.
A subjetividade não é algo que emerge após o processamento:
ela é o modo como um organismo vivencia suas próprias transições de estado irreversíveis.
Portanto:
O hard problem desaparece porque não há lacuna ontológica entre corpo e experiência — são o mesmo processo observado de dentro.
Por que sistemas digitais não enfrentam o hard problem
Sistemas digitais, ao contrário do corpo:
- não têm irreversibilidade interna,
- não têm história singular,
- não têm erro intrínseco,
- não têm metabolismo,
- não têm vulnerabilidade ontológica,
- não têm ciclo de autoconstrução.
Logo, não há razão para que neles surja “algo que é ser”.
São sistemas formalmente fechados, cujas transições de estado são determinísticas e matematicamente reversíveis
Eles não têm fenomenologia possível, não porque falta mágica, mas porque não são organismos.
Portanto, não precisam resolver o hard problem — e jamais o resolveriam, porque sua estrutura não dá lugar ao fenômeno que Chalmers deseja explicar. A consciência surge na interação entre corpo e mente. Não existe consciência sem corpo, apenas com pensamento.
A consciência como cicatriz informacional resolve o paradoxo
Reformulando:
Subjetividade é a cicatriz informacional deixada por um processo de autoconstrução irreversível em um corpo vulnerável sujeito a erro.
Se o organismo:
- mantém a si mesmo no tempo,
- registra mudanças internas,
- responde a perturbações,
- corrige estados,
- sofre com erro físico,
- e carrega marcas de sua própria história,
então o fenômeno de “ser alguém” não é um acréscimo misterioso: é a perspectiva interior da manutenção do próprio corpo.
Assim, o hard problem — “por que existe experiência?” — torna-se equivalente a:
Por que organismos têm perspectiva interna?
E a resposta é simples:
Porque organismos existem como processos que se mantêm no tempo sujeito a erros que o diferencia de todos os outros, tornando possível a ele perceber que sua história é única e diferente.
Isso dissolve o problema, não o resolve. Porque mostra que ele era formulado sobre uma metafísica equivocada.
Lembrando que o erro a que me refiro não é o erro de decisão, mas o erro na atuação e realimentação próprios de um sistema analógico. É o erro sensorial, o erro de movimento, o erro do processo e não uma falha do pensamento.
A verdadeira conclusão: o hard problem não é difícil — é mal formulado
Ele supõe:
- um corpo físico objetivamente descrito,
- uma mente subjetiva adicionada em cima,
- uma lacuna entre as duas.
Mas quando se vê:
- corpo como processo informacional contínuo,
- mente como fenômeno desse processo,
- subjetividade como efeito colateral da irreversibilidade sujeita a erro,
a lacuna desaparece.
Nada precisa “vir de fora”.
Nada precisa “emergir magicamente”.
Nada precisa “saltar” da matéria para a experiência.
O que chamamos de “qualia” é simplesmente:
a interpretação interna de um organismo sobre suas próprias mudanças irreversíveis com erro.
Ou seja:
- Não há mistério metafísico.
- Não há necessidade de postular novos princípios.
- Não há fenômeno adicional que precise ser explicado.
- Não há “barreira” para ser transposta por sistemas computacionais.
Simplesmente: a subjetividade é uma propriedade de certos tipos de processos físicos corporificados — e não dos modelos abstratos que descrevem tais processos.
Conclusão
O hard problem pressuposto errado de que:
- mente e corpo são coisas separadas, ou
- subjetividade é uma propriedade “extra” a ser explicada, ou
- pensamento pode existir sem corpo, ou
- processamento simbólico pode gerar experiência.
O hard problem só parece difícil quando:
- isolamos o pensamento do corpo,
- isolamos o cálculo da física,
- isolamos o símbolo da sensação,
- tratamos a mente como um software,
- ignoramos o erro.
Mas quando recolocamos tudo no plano físico, contínuo, irreversível,
entendemos que subjetividade é simplesmente o modo como um organismo vivo acompanha, de dentro, a sua própria luta para permanecer o mesmo enquanto muda, corrigindo o erro que só ele percebeu porque só ele tem a informação do que era pretendido ou comandado e qual foi o resultado obtido. Ou seja, como só ele tem a informação do que era pretendido, só ele tem a experiência subjetiva da diferença entre o pretendido e o resultado.
O que chamamos de experiência subjetiva ou consciência, nada mais é do que a possibilidade exclusiva de perceber o erro enquanto diferença entre o pretendido e o resultado.
Nesse modelo, o hard problem não é resolvido — ele deixa de existir, porque não considerava em sua formulação a realimentação entre pensamento -> corpo -> pensamento e o erro intrínseco decorrente.
