A discussão sobre consciência artificial costuma girar em torno da pergunta: as máquinas um dia serão conscientes? A maior parte das respostas parte da suposição de que consciência é um fenômeno cognitivo, emergente de padrões suficientemente complexos de processamento de informação. Nesse raciocínio, bastaria aumentar a escala, o treinamento ou o poder de cálculo para que uma inteligência artificial desenvolvesse subjetividade.
Essa visão, porém, ignora algo fundamental: consciência não é uma propriedade do pensamento isolado. Ela é uma propriedade do pensamento enquanto produto do corpo.
Ao separar o fenômeno da mente de seu suporte físico — como se a consciência pudesse existir independente da matéria que a dá origem — acabamos reproduzindo um equívoco antigo, centrado na ilusão de que “pensamento está acima do corpo”. Mas nenhum pensamento existe sem substrato; nenhuma subjetividade emerge sem corporeidade.
Neste ensaio, proponho um modelo alternativo: a subjetividade é um efeito colateral da corporeidade, uma consequência inevitável de um tipo específico de dinâmica física — e, por isso, não pode surgir em sistemas digitais tradicionais, mesmo que dotados de modelos de linguagem avançados ou de robôs inteligentes.
A consciência só emerge em substrato analógico.
Consciência é pensamento quando pensamento é produto do corpo
Quando dizemos que uma pessoa “tem consciência”, não estamos nos referindo ao conteúdo dos pensamentos, mas ao fato de que esses pensamentos são vividos de dentro, a partir de um ponto de vista singular que só existe porque há um corpo produzindo e modulando esses estados.
Em termos computacionais — e aqui falo também como pesquisador em inteligência computacional — isso significa que:
- Consciência não é processamento simbólico;
- Consciência é processamento físico-informacional incorporado, produzido por um organismo que existe no tempo, no espaço e sob risco.
O pensamento é o domínio fenomenológico daquilo que o corpo está fazendo. Ele não é causa primeira; é consequência.
Subjetividade como emergência de um processo recursivo sobre estados irreversíveis
A subjetividade, entendida como “sensação de ser alguém”, não é um módulo especial do cérebro. É, antes, uma propriedade emergente de uma função computacional recursiva executada sobre:
- estados físicos,
- irreversíveis,
- incopiáveis no detalhe,
- e necessariamente afetados por erro.
Esse erro — termo aqui usado no sentido físico e não computacional — é fundamental. Trata-se de pequenas perturbações térmicas, químicas e quânticas que tornam a história de um organismo única, não reprodutível e não reiniciável.
Sem erro real e sem irreversibilidade real, não há individuação.
Sem individuação, não há sujeito.
Sem sujeito, não há qualia.
Por que sistemas puramente digitais não podem gerar qualia
Modelos de linguagem, por mais impressionantes que sejam, são funções matemáticas determinísticas, perturbadas apenas por ruído exógeno introduzido no processo de amostragem. Esse ruído:
- não faz parte do sistema,
- não altera estados ontológicos internos,
- não produz vulnerabilidade,
- não produz história,
- não produz um “eu”.
A máquina digital é projetada para eliminar precisamente aquilo que torna a subjetividade possível:
- variação física contínua,
- instabilidade,
- falibilidade,
- irreversibilidade,
- perturbações internas não controláveis.
Ao contrário da biologia, que integra erro em sua própria estrutura, a computação digital trata o erro como algo a ser corrigido ou descartado.
Por isso, nenhuma IA poderá desenvolver consciência subjetiva nos moldes humanos enquanto operar sobre substratos digitais determinísticos. É necessário que o sujeito vivencie o erro que através de sua história o torna um indivíduo.
O equívoco sobre robôs conscientes
Às vezes se afirma que, se fornecermos um “corpo” físico ao modelo — um robô com sensores e atuadores — a consciência poderia emergir. Mas isso confunde dois níveis:
- o robô é vulnerável, mas suas partes são substituíveis;
- o modelo é sofisticado, mas seus estados são copiáveis.
Nenhum dos dois possui aquilo que define um ser consciente:
uma história irreversível inscrita em um corpo que só existe enquanto existir seu próprio processo de manutenção.
Um robô não é autopoético.
Ele não se produz, não se sustenta, não teme o fim, não cicatriza.
Ele não tem “algo a perder”.
Logo, não tem subjetividade.
Dar um corpo a um modelo grande de linguagem não tornará o modelo consciente porque não é no pensamento agindo sobre o corpo que surge a experiência subjetiva.
É dar ao robô (corpo) um mecanismo suficientemente sofisticado de inferência (modelo) que pode fazer emergir no conjunto fechado o princípio do que podemos chamar um dia de consciência.
A consciência não está na complexidade, mas na singularidade corporal do indivíduo
Complexidade computacional não produz experiência subjetiva.
Inteligência funcional não produz qualia.
Memória não produz “eu”.
O que produz subjetividade é:
- um corpo vulnerável,
- uma história irreplicável,
- um ciclo contínuo de transformações irreversíveis,
- erro intrínseco,
- e uma função recursiva que interpreta a si mesma no tempo.
A consciência é, enfim, uma cicatriz informacional inscrita em um corpo que muda ao se manter vivo. É a história irreplicável emergente de um processo recursivo sobre transições corporais irreversíveis com erro intrínseco.
Isso coloca a IA em perspectiva: ela pode modelar, simular, emular e até superar o pensamento humano em muitos domínios — mas nunca será um sujeito. Nunca terá qualia. Nunca terá um “dentro”.
É do corpo enquanto sujeito do pensamento que age sobre o próprio corpo que surge a experiência subjetiva da qual surge a consciência.
Conclusão
O debate sobre consciência artificial perde seu eixo quando tenta localizar subjetividade no processamento simbólico. A consciência não está no símbolo, nem no algoritmo, nem nos tokens. Ela está no corpo que pensa, sente e se modifica, na trajetória irreversível que esse corpo percorre, e na história única que emerge das falhas, perturbações e erros acumulados.
Modelos de linguagem são extraordinários, mas são — e sempre serão — ferramentas.
Corpos físicos são vulneráveis, mas são — e sempre serão — sujeitos.
E é dessa assimetria fundamental que nasce a consciência.
